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terça-feira, 16 de julho de 2013

A Mesa e a Cadeira de Balanço

Ivan Venturini

    Há muito tempo atrás, numa simples e bonita casa no campo, morava uma família. Gente trabalhadora e honesta, acostumada à dura lida do campo, mas gratificada com os resultados de plantar, colher e vender os frutos de seu trabalho; colaborando, também, para o abastecimento de alimentos na vila em que moravam.
    Na casa da família existia uma Mesa rodeada de seis Cadeiras, cada uma ocupada pelos membros da família quando sentavam-se para as refeições, ou ainda para conversar e deliberar as ações futuras.
    Dona Mesa, confeccionada com Angelim, madeira de lei, era firme como rocha e sobre seu tampo era feito todo tipo de serviço: de escolher feijão, às contas do orçamento; das lições de escola das crianças, às leituras noturnas da Palavra de Deus; dos saborosos doces devorados por todos, às roupas passadas para as freguesas da Dona da Casa. Tantos trabalhos deixaram marcas diversas: de facas, facões, ferros de passar, panelas quentes, líquidos derramados, marcas de talheres que eram batidos pelos pequenos quando comiam, e outras tantas. Tais marcas, longe de provocar reclamações de Dona Mesa lamentando sua sorte por tê-las, pelo contrário: Eram orgulhosamente ostentadas como prova da passagem do tempo, prova de seus serviços prestados à família, prova de sua experiência e utilidade a ser compartilhada com os demais Móveis e Objetos da casa, em especial, as Cadeiras que muito a admiravam. Como dizia Dona Mesa: “- Minhas marcas são a prova de uma vida de utilidade, ainda que pequena, à sociedade que me cerca.”
    Sempre aconselhando as Cadeiras e demais Móveis da casa, que haviam sido feitos pelo Pai da Família, Dona Mesa dizia: “-Sejam fortes e trabalhadores em suas funções, para as quais foram criados. Não façam corpo mole diante das dificuldades. Não se esqueçam de que nossos maiores inimigos, os cupins, são trabalhadores silenciosos. Eles não descansam nunca e estão sempre à espreita de um cochilo nosso, para atacar e minar nossas defesas internas, até que não mais prestemos e tenhamos que ser jogadas ao fogo!” (¹)
          “- Se nosso senhor, que nos fez, descobrir cupins em nosso interior, seremos queimadas. Talvez jogadas fora, apanhando umidade e apodrecendo ao relento, na melhor da hipóteses.”
    Tais palavras provocavam nos demais Móveis da cozinha, bem como de toda a casa, um sentimento de responsabilidade e alerta constante. E ao contrário do que poderia parecer, o clima entre eles, era de paz, amizade, ordem, companheirismo. Cada Móvel procurava auxiliar seus semelhantes. Cada um observava as pragas que poderiam se aproximar dos demais e de si próprio, cuidando para que nada de ruim acontecesse. A vigilância mútua, o camaradismo, a amizade que os unia levava-os ao aperfeiçoamento das relações. (²)
     Todos se ajudavam mutuamente, ou melhor: quase todos.
    Numa de suas idas ao vilarejo próximo à casa, o Pai da Família havia comprado uma Cadeira de Balanço que pertencera a uma rica família que se mudara dali. O Dono da Loja de objetos usados fizera bom preço e a Cadeira de Balanço serviria à Senhora que estava grávida e poderia usá-la durante o tempo de amamentação, possibilitando maior conforto.
    Assim que a Cadeira chegou houve um grande rebuliço na casa, com as crianças querendo sentar, todas ao mesmo tempo, para balançar. O Pai teve de ser firme, embora dócil, antes que a “pobre” cadeira fosse desmontada por inteiro.
    Passado o primeiro momento de novidade na casa, e já tarde da noite, a hora em que os objetos conversam mais livremente, pois todos os humanos estão dormindo, Dona Mesa resolveu se apresentar à nova moradora, explicar a forma de funcionamento da casa, quais eram seus moradores, etc. Qual não foi sua surpresa com a resposta da Cadeira:
          -Eu não sei você “queridinha”, mas eu não pretendo morar por muito tempo nesta casa horrível, cheia de humanos sem a menor classe; sem modos, sem educação. Uma casa infestada de crianças. Este lugar causa-me náuseas. Eu não fui feita para estes ambientes. De onde eu vim, apenas nobres senhoras sentavam-se sobre mim. Meu lugar era nas salas de conversa, junto às mulheres, enquanto os homens conversavam na biblioteca ou na sala de estar. Muitas vezes fui colocada no quarto de minha senhora ou de sua mãe. Mas nunca numa cozinha, com este fogão a lenha, nesta casa tão pequena e cheia destes...destes... destes detestáveis pequenos pirralhos!
    A Cadeira de Balanço era só reclamação.
    Dona Mesa tentou acalmá-la: -Calma minha querida, você verá que a vida aqui não é ruim. Tenha paciência com as crianças. Elas nunca viram uma cadeira como você. Estão eufóricas com a novidade. Logo esta euforia passa e eles te deixarão em paz. Eu garanto. Já vivi muito tempo nesta família, desde que fui confeccionada por meu senhor e sei que os pequenos não te farão nada de mal. Acalme-se. Esta gente é simples, mas é boa, justa e trabalhadora. Você verá que a vida aqui será melhor do que de onde você veio.
          -Você esta brincando não é? Viver bem neste antro? De jeito nenhum! Quem você pensa que é para me dizer estas coisas? Logo eu, uma Cadeira de Balanço feita pelos mais nobres Mestres Marceneiros Italianos, enquanto você foi feita por um “zé ninguém”? Ponha-se no seu lugar já! - disse a Cadeira.
    Dona Mesa calou-se, diante da explosão enfurecida da Cadeira. Com certa mágoa, mas entendendo que a Cadeira estava, apenas, com dificuldade de acostumar-se à nova vida.
    O tempo passou e o comportamento da Cadeira não melhorava. Ela ofendia às demais Cadeiras, falava desaforos ao Armário em que eram guardadas as Louças, esnobava as pobres Prateleiras em que ficavam as Panelas, gritava com os Pregos em que eram penduradas as Colheres de cozinha, xingava os Talheres por não serem de prata e principalmente: Brigava o tempo todo com Dona Mesa, o alvo favorito de seus ataques de fúria e ódio.
  • - Odeio estas crianças fedidas e bagunceiras que sentam todo o tempo em mim!
  • - Odeio esta mulher enorme sentando este peso imenso e ainda acompanhada deste menininho que chora todo o tempo! Eu não aguento este barulho, esta gente, este lugar. Preciso ir embora daqui. Ainda vou dar um tombo nesta gente!
  • - Odeio você que os defende o tempo todo!
    Todos os Móveis e Objetos da casa tentavam entender os motivos de tanta fúria e ódio, mas nada explicava tal comportamento. Mesmo que se levasse em conta o revés na vida pelo qual ela, Cadeira de Balanço, havia passado, nada justificava tal comportamento tão agressivo. A solução, para evitar mais desgastes e aborrecimentos, foi evitar dar atenção à Cadeira de Balanço. Todos a deixavam falar e falar, explodindo seus impropérios ate´que ela se cansasse e calasse. A única que lhe dava alguma atenção, pois conservava a esperança de torná-la amigável a todos, era Dona Mesa.
    No dia em que o Pai da Família achou furos na Cadeira de Balanço e pó no chão, característicos da existência de cupins em seu interior, a casa se transformou num verdadeiro caos. Todos falavam ao mesmo tempo: O Pai queria desmontar a Cadeira e usar sua madeira como lenha. A Mãe não deixou, pois o bebê havia nascido e durante o longo tempo de amamentação ela sentava para alimentar a criança; para desespero da Cadeira que detestava ser empregada desta maneira. Os filhos dividiram-se entre os que queriam fazer uma enorme fogueira e os que queriam mantê-la para balançar:
  • - Queima ela Pai! Queima ela. Vai ser muito legal! - diziam uns.
  • - Não queima não Pai! Não queima. Ela é boa para gente balançar.
    A noite, a confusão entre os móveis não foi menor: Todos queriam opinar quanto ao destino da Cadeira de Balanço dividindo-se, também, entre os favoráveis à queima imediata da Cadeira, até para evitar a contaminação dos demais móveis, e aqueles que defendiam sua retirada imediata para o quintal para que apodrecesse com o tempo.
  • - Joguem esta esnobe no quintal para apodrecer! - gritavam os Pratos.
  • - Melhor queimar esta infeliz no fogão a lenha! - praguejavam os Talheres.
  • - Quero sentir o cheiro de sua nobreza queimando! -gracejavam as panelas.
  • - Acabem com “sua alteza”! - dizia o Armário de louças.
    Depois de muita confusão, gritos e sentimentos de vingança destilados contra a “assustada” Cadeira de Balanço, Dona Mesa falou com propriedade e autoridade a ponto de todos aquietarem-se:
  • -Calem-se todos vocês! Chega de tanto ódio e rancor! Vocês estão se comportando da mesma forma que sempre condenaram! Parem com estas tolices. Desde quando vocês decidem alguma coisa aqui dentro! Quem lhes deu autoridade para julgar e condenar a Cadeira! Ponham-se no seu lugar! Não vamos deixar que a paz, solidariedade, companheirismo que sempre marcaram nosso meio, deixem de existir! (³)
    Um grande silêncio se fez em toda a casa. Todos os móveis, apesar dos motivos que tinham para se deliciar com a má sorte da Cadeira cheia de cupins, calaram-se e refletiram nas palavras de Dona Mesa, como sempre a mais serena e sábia de todos.
  • - Devemos buscar ampará-la nesta hora. Tomara que nosso Senhor saiba oque fazer para descontaminá-la. Ouvi dizer que existem produtos que são capazes de penetrar a madeira e matar os cupins, os reais inimigos de todos nós. Amanhã será outro dia e nosso Senhor certamente saberá como agir. Quanto a você Cadeira de Balanço, descanse e aguarde amanhã aquilo que será decidido sobre você. Não sofra por antecipação. “Deixe a cada dia o seu mal.!”(4 )
    Tais palavras surpreenderam a Cadeira de Balanço. Ela jamais imaginou que poderia ser defendida. Ainda mais por Dona Mesa que foi sempre ofendida por suas maiores agressões.
    No dia seguinte o Pai da Família saiu bem cedo e quando voltou trouxe um dos produtos que Dona Mesa disse que existiam. Afinal era verdade: Os cupins poderiam ser eliminados de seu interior.
    O tratamento foi muito dolorido e demorado. A cada furo novo, acompanhado do pó característico de infestação de cupins na madeira, uma nova dose de remédio era aplicada para matar e afugentar aos cupins. A tinta bonita de outrora foi descascada para que todos os furos de cupins fossem visualizados e nova demão não foi aplicada. A Cadeira perdeu todo seu brilho do passado, restando apenas os ricos, mas desgastados, entalhes que lembravam vagamente o reflexo daquilo que tinha sido, um dia: uma bela Cadeira de Balanço.
    Mas afinal, a Cadeira tinha sido salva, embora o Pai da Família tivesse ressalvas quanto a sua capacidade de suportar peso. Afinal o estrago causado pelos cupins havia sido muito grande e parte de sua estrutura poderia ter sido afetada.
    A Mãe, no entanto,  e parte das crianças tanto pediu que o Pai, afinal permitiu que a cadeira fosse utilizada, mas com uma condição:
  • - Não quero saber de ver vocês pulando feito doidos nela! Esta cadeira esta muito abalada pelo cupins. Nem sei se ela aguenta muito tempo. Se vocês tomarem cuidado, talvez ela não se quebre, mas senão...Tenho muito medo de que um de vocês se machuquem com sua queda. Tomem cuidado crianças!
    O tempo passou e a vida voltou ao normal naquela casa. Aliás, apenas no reino dos objetos houve espanto e anormalidade durante o tempo de cura da Cadeira. Para os humanos a operação de descupinizar a Cadeira de Balanço, era algo dentro da normalidade, não exigindo maiores atenções, senão as habituais.

    Durante as crises por que passamos, muitos aprendem lições de vida e mudam, enquanto que outros...
    Assim foi com a Cadeira de Balanço. Tão logo se viu livre dos cupins, voltou a agir da mesma forma de antes: Ofendendo aos demais, gritando com todos, esnobando os companheiros de cozinha e principalmente desferindo seu ódio contra Dona Mesa. Talvez, sua principal mágoa viesse do fato de que Dona Mesa sempre defendia a Família; talvez fosse o fato de sempre ser utilizada para tantos serviços; talvez a sabedoria com que conduzia todas as questões surgidas...quem sabe oque se passava em seu interior? Desconfio que seu maior problema fosse a inveja pela preferência que todos tinham, na casa, por Dona Mesa.
    A cadeira de balanço estava decidida a sair daquela casa de um jeito ou de outro e numa das poucas vezes em que se dirigiu a Dona Mesa sem as agressões habituais disse:
  • - Como você aguenta esta vida? Eu não suporto mais esta gente! Esta casa! Estes móveis! Não suporto mais nada! Nada! Nada! Chega! Já tenho até uma ideia para ir embora: Vou dar um tombo nesta mulher que toda vez senta em mim, com aquele pirralho chorão. O homem esta precisando de dinheiro, ouvi eles falarem outro dia. Depois de um bom tombo eles irão vender-me para qualquer um e eu saio de vez desta pocilga!
  • - Não faça uma coisa destas Cadeira. -disse Dona Mesa. – O nosso Senhor é um homem bom e não vai vendê-la para ninguém. Ainda mais se houver a possibilidade de você estar ruim devido aos cupins que te infestaram. Ele vai te jogar fora ou queimá-la.
    A cadeira respondeu cheia de sí: -Engano seu minha “queridinha”. O homem esta precisando de dinheiro e não vai desperdiçar a chance de ganhar um bom dinheiro com minha venda. Eu valho muito. Além disso, já ví ele negociando com os homens que vem aqui, comprar sua produção.
  • - Por isso mesmo sua tola! Não viu que ele não se deixa enganar, mas também não engana ninguém? - respondeu, aflita, Dona mesa.
  • - Como você é ingênua minha “boa” Mesa – disse cinicamente a Cadeira – Ele é homem e os homens sempre se enganam. Não é possível que este tonto não tenha aprendido nada com seus semelhantes. Esta decidido: Eu provoco um tombo da Senhora ou num destes pequenos rebentos e o homem vai vender-me. Já sei, vou fazer melhor: Darei um tombo na Senhora quando ela estiver com este chorão mamando. Assim ele terá um bom motivo para chorar. - Um cínico riso, proveniente de um mau coração, foi notado por todos os Móveis e Objetos da cozinha.
    Não houve tempo para que Dona Mesa argumentasse com a Cadeira de Balanço, quanto a loucura de seu plano. E se houvesse, certamente a Cadeira não a ouviria; estava determinada!
    Naquele momento a Senhora dirigia-se para amamentar à criança; a Cadeira de Balanço, unindo ação às suas recentes palavras derrubou ambos no chão. O tombo foi tão forte que todos acharam que a Senhora houvesse quebrado seus ossos. Ela levantou-se com dores. Imediatamente voltou-se para o Bebê, que chorava muito. Felizmente só estava assustado. Não tinha se machucado. Quanto a senhora, sofreu apenas alguns hematomas. Nada grave.
    A cadeira sorria: - Consegui, consegui! Dei o tombo na Senhora. Agora esta gente me vende, você vai ver.
    Não tardou e o Pai da Família chegou:
  • - Pai: A mãe levou um tombão na cadeira de balanço, quando estava dando leite para o nenê! - disse um dos filhos.
  • - Não acredito! Quantas vezes eu já falei para vocês tomarem cuidado com esta cadeira!? Ela deve estar podre por causa dos cupins. Machucou alguém? - perguntou o Pai.
  • - Não, ninguém se machucou. Eu só fiquei com algumas marcas doloridas no corpo, causadas pelo tombo. Mas não foi nada grave. - respondeu a mãe.
    O Pai olha para a Cadeira de Balanço e diz: - Não tem jeito não. Esta cadeira esta podre. Vejam como um dos “pés” dela quebrou, quando caiu. Deve estar toda cheia de cupins. Aquele serviço que eu fiz não surtiu efeito. Acho que só tem um jeito: Vou acabar de quebrá-la e usar a madeira como lenha para o fogão.
    Ao ouvir isto a Cadeira de Balanço agitou-se inteira em seu interior e Dona Mesa disse: - Minha filha, mas oque foi que você fez? Assinou sua sentença.
           - Eu não quero ser quebrada e queimada! Eu não quero ser quebrada e queimada. Me ajudem! Alguém me ajude, por favor. Não quero! Não quero!
    Os demais móveis e objetos da cozinha nada poderiam fazer, apenas contemplar a triste “sorte”, procurada pela Cadeira de Balanço.
     Naquela noite, muito fria, houve mais lenha para aquecer a todos naquela casa.

Fim

As referências encontram-se em textos da Bíblia: Nova Versão Internacional (NVI)

¹- Portanto, submetam-se a Deus. Resistam ao diabo, e ele fugirá de vocês.” Tiago 4:7
¹- Sejam sóbrios e vigiem. O diabo, o inimigo de vocês, anda ao redor como leão, rugindo e procurando a quem possa devorar.” 1 Pedro 5:8

² –Da multidão dos que creram, uma era a mente e um o coração. Ninguém considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas compartilhavam tudo o que tinham.” Atos 4:32

³ – “Não julguem, para que vocês não sejam julgados.” Mateus 7:1
³ - “Visto que continuavam a interrogá-lo, ele se levantou e lhes disse: "Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela". João 8:7


4 - “Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã se preocupará consigo mesmo. Basta a cada dia o seu próprio mal.” Mateus 6:34