Ivan Venturini
Há
muito tempo atrás, numa simples e bonita casa no campo, morava uma
família. Gente trabalhadora e honesta, acostumada à dura lida do
campo, mas gratificada com os resultados de plantar, colher e vender
os frutos de seu trabalho; colaborando, também, para o abastecimento
de alimentos na vila em que moravam.
Na
casa da família existia uma Mesa rodeada de seis Cadeiras, cada uma
ocupada pelos membros da família quando sentavam-se para as
refeições, ou ainda para conversar e deliberar as ações futuras.
Dona
Mesa, confeccionada com Angelim, madeira de lei, era firme como rocha
e sobre seu tampo era feito todo tipo de serviço: de escolher
feijão, às contas do orçamento; das lições de escola das
crianças, às leituras noturnas da Palavra de Deus; dos saborosos
doces devorados por todos, às roupas passadas para as freguesas da
Dona da Casa. Tantos trabalhos deixaram marcas diversas: de facas,
facões, ferros de passar, panelas quentes, líquidos derramados,
marcas de talheres que eram batidos pelos pequenos quando comiam, e
outras tantas. Tais marcas, longe de provocar reclamações de Dona
Mesa lamentando sua sorte por tê-las, pelo contrário: Eram
orgulhosamente ostentadas como prova da passagem do tempo, prova de
seus serviços prestados à família, prova de sua experiência e
utilidade a ser compartilhada com os demais Móveis e Objetos da
casa, em especial, as Cadeiras que muito a admiravam. Como dizia Dona
Mesa: “- Minhas marcas são a prova de uma vida de utilidade, ainda
que pequena, à sociedade que me cerca.”
Sempre
aconselhando as Cadeiras e demais Móveis da casa, que haviam sido
feitos pelo Pai da Família, Dona Mesa dizia: “-Sejam fortes e
trabalhadores em suas funções, para as quais foram criados. Não
façam corpo mole diante das dificuldades. Não se esqueçam de que
nossos maiores inimigos, os cupins, são trabalhadores silenciosos.
Eles não descansam nunca e estão sempre à espreita de um cochilo
nosso, para atacar e minar nossas defesas internas, até que não
mais prestemos e tenhamos que ser jogadas ao fogo!” (¹)
“-
Se nosso senhor, que nos fez, descobrir cupins em nosso interior,
seremos queimadas. Talvez jogadas fora, apanhando umidade e
apodrecendo ao relento, na melhor da hipóteses.”
Tais
palavras provocavam nos demais Móveis da cozinha, bem como de toda a
casa, um sentimento de responsabilidade e alerta constante. E ao
contrário do que poderia parecer, o clima entre eles, era de paz,
amizade, ordem, companheirismo. Cada Móvel procurava auxiliar seus
semelhantes. Cada um observava as pragas que poderiam se aproximar
dos demais e de si próprio, cuidando para que nada de ruim
acontecesse. A vigilância mútua, o camaradismo, a amizade que os
unia levava-os ao aperfeiçoamento das relações. (²)
Todos
se ajudavam mutuamente, ou melhor: quase todos.
Numa
de suas idas ao vilarejo próximo à casa, o Pai da Família havia
comprado uma Cadeira de Balanço que pertencera a uma rica família
que se mudara dali. O Dono da Loja de objetos usados fizera bom preço
e a Cadeira de Balanço serviria à Senhora que estava grávida e
poderia usá-la durante o tempo de amamentação, possibilitando
maior conforto.
Assim
que a Cadeira chegou houve um grande rebuliço na casa, com as
crianças querendo sentar, todas ao mesmo tempo, para balançar. O
Pai teve de ser firme, embora dócil, antes que a “pobre” cadeira
fosse desmontada por inteiro.
Passado
o primeiro momento de novidade na casa, e já tarde da noite, a hora
em que os objetos conversam mais livremente, pois todos os humanos
estão dormindo, Dona Mesa resolveu se apresentar à nova moradora,
explicar a forma de funcionamento da casa, quais eram seus moradores,
etc. Qual não foi sua surpresa com a resposta da Cadeira:
-Eu
não sei você “queridinha”, mas eu não pretendo morar por muito
tempo nesta casa horrível, cheia de humanos sem a menor classe; sem
modos, sem educação. Uma casa infestada de crianças. Este lugar
causa-me náuseas. Eu não fui feita para estes ambientes. De onde eu
vim, apenas nobres senhoras sentavam-se sobre mim. Meu lugar era nas
salas de conversa, junto às mulheres, enquanto os homens conversavam
na biblioteca ou na sala de estar. Muitas vezes fui colocada no
quarto de minha senhora ou de sua mãe. Mas nunca numa cozinha, com
este fogão a lenha, nesta casa tão pequena e cheia
destes...destes... destes detestáveis pequenos pirralhos!
A
Cadeira de Balanço era só reclamação.
Dona
Mesa tentou acalmá-la: -Calma minha querida, você verá que a vida
aqui não é ruim. Tenha paciência com as crianças. Elas nunca
viram uma cadeira como você. Estão eufóricas com a novidade. Logo
esta euforia passa e eles te deixarão em paz. Eu garanto. Já vivi
muito tempo nesta família, desde que fui confeccionada por meu
senhor e sei que os pequenos não te farão nada de mal. Acalme-se.
Esta gente é simples, mas é boa, justa e trabalhadora. Você verá
que a vida aqui será melhor do que de onde você veio.
-Você
esta brincando não é? Viver bem neste antro? De jeito nenhum! Quem
você pensa que é para me dizer estas coisas? Logo eu, uma Cadeira
de Balanço feita pelos mais nobres Mestres Marceneiros Italianos,
enquanto você foi feita por um “zé ninguém”? Ponha-se no seu
lugar já! - disse a Cadeira.
Dona
Mesa calou-se, diante da explosão enfurecida da Cadeira. Com certa
mágoa, mas entendendo que a Cadeira estava, apenas, com dificuldade
de acostumar-se à nova vida.
O
tempo passou e o comportamento da Cadeira não melhorava. Ela ofendia
às demais Cadeiras, falava desaforos ao Armário em que eram
guardadas as Louças, esnobava as pobres Prateleiras em que ficavam
as Panelas, gritava com os Pregos em que eram penduradas as Colheres
de cozinha, xingava os Talheres por não serem de prata e
principalmente: Brigava o tempo todo com Dona Mesa, o alvo favorito
de seus ataques de fúria e ódio.
- - Odeio estas crianças fedidas e bagunceiras que sentam todo o tempo em mim!
- - Odeio esta mulher enorme sentando este peso imenso e ainda acompanhada deste menininho que chora todo o tempo! Eu não aguento este barulho, esta gente, este lugar. Preciso ir embora daqui. Ainda vou dar um tombo nesta gente!
- - Odeio você que os defende o tempo todo!
Todos
os Móveis e Objetos da casa tentavam entender os motivos de tanta
fúria e ódio, mas nada explicava tal comportamento. Mesmo que se
levasse em conta o revés na vida pelo qual ela, Cadeira de Balanço,
havia passado, nada justificava tal comportamento tão agressivo. A
solução, para evitar mais desgastes e aborrecimentos, foi evitar
dar atenção à Cadeira de Balanço. Todos a deixavam falar e falar,
explodindo seus impropérios ate´que ela se cansasse e calasse. A
única que lhe dava alguma atenção, pois conservava a esperança de
torná-la amigável a todos, era Dona Mesa.
No
dia em que o Pai da Família achou furos na Cadeira de Balanço e pó
no chão, característicos da existência de cupins em seu interior,
a casa se transformou num verdadeiro caos. Todos falavam ao mesmo
tempo: O Pai queria desmontar a Cadeira e usar sua madeira como
lenha. A Mãe não deixou, pois o bebê havia nascido e durante o
longo tempo de amamentação ela sentava para alimentar a criança;
para desespero da Cadeira que detestava ser empregada desta maneira.
Os filhos dividiram-se entre os que queriam fazer uma enorme fogueira
e os que queriam mantê-la para balançar:
- - Queima ela Pai! Queima ela. Vai ser muito legal! - diziam uns.
- - Não queima não Pai! Não queima. Ela é boa para gente balançar.
A
noite, a confusão entre os móveis não foi menor: Todos queriam
opinar quanto ao destino da Cadeira de Balanço dividindo-se, também,
entre os favoráveis à queima imediata da Cadeira, até para evitar
a contaminação dos demais móveis, e aqueles que defendiam sua
retirada imediata para o quintal para que apodrecesse com o tempo.
- - Joguem esta esnobe no quintal para apodrecer! - gritavam os Pratos.
- - Melhor queimar esta infeliz no fogão a lenha! - praguejavam os Talheres.
- - Quero sentir o cheiro de sua nobreza queimando! -gracejavam as panelas.
- - Acabem com “sua alteza”! - dizia o Armário de louças.
Depois
de muita confusão, gritos e sentimentos de vingança destilados
contra a “assustada” Cadeira de Balanço, Dona Mesa falou com
propriedade e autoridade a ponto de todos aquietarem-se:
- -Calem-se todos vocês! Chega de tanto ódio e rancor! Vocês estão se comportando da mesma forma que sempre condenaram! Parem com estas tolices. Desde quando vocês decidem alguma coisa aqui dentro! Quem lhes deu autoridade para julgar e condenar a Cadeira! Ponham-se no seu lugar! Não vamos deixar que a paz, solidariedade, companheirismo que sempre marcaram nosso meio, deixem de existir! (³)
Um
grande silêncio se fez em toda a casa. Todos os móveis, apesar dos
motivos que tinham para se deliciar com a má sorte da Cadeira cheia
de cupins, calaram-se e refletiram nas palavras de Dona Mesa, como
sempre a mais serena e sábia de todos.
- - Devemos buscar ampará-la nesta hora. Tomara que nosso Senhor saiba oque fazer para descontaminá-la. Ouvi dizer que existem produtos que são capazes de penetrar a madeira e matar os cupins, os reais inimigos de todos nós. Amanhã será outro dia e nosso Senhor certamente saberá como agir. Quanto a você Cadeira de Balanço, descanse e aguarde amanhã aquilo que será decidido sobre você. Não sofra por antecipação. “Deixe a cada dia o seu mal.!”(4 )
Tais
palavras surpreenderam a Cadeira de Balanço. Ela jamais imaginou que
poderia ser defendida. Ainda mais por Dona Mesa que foi sempre
ofendida por suas maiores agressões.
No
dia seguinte o Pai da Família saiu bem cedo e quando voltou trouxe
um dos produtos que Dona Mesa disse que existiam. Afinal era verdade:
Os cupins poderiam ser eliminados de seu interior.
O
tratamento foi muito dolorido e demorado. A cada furo novo,
acompanhado do pó característico de infestação de cupins na
madeira, uma nova dose de remédio era aplicada para matar e
afugentar aos cupins. A tinta bonita de outrora foi descascada para
que todos os furos de cupins fossem visualizados e nova demão não
foi aplicada. A Cadeira perdeu todo seu brilho do passado, restando
apenas os ricos, mas desgastados, entalhes que lembravam vagamente o
reflexo daquilo que tinha sido, um dia: uma bela Cadeira de Balanço.
Mas
afinal, a Cadeira tinha sido salva, embora o Pai da Família tivesse
ressalvas quanto a sua capacidade de suportar peso. Afinal o estrago
causado pelos cupins havia sido muito grande e parte de sua estrutura
poderia ter sido afetada.
A Mãe, no entanto, e parte das crianças tanto pediu que o Pai, afinal permitiu
que a cadeira fosse utilizada, mas com uma condição:
- - Não quero saber de ver vocês pulando feito doidos nela! Esta cadeira esta muito abalada pelo cupins. Nem sei se ela aguenta muito tempo. Se vocês tomarem cuidado, talvez ela não se quebre, mas senão...Tenho muito medo de que um de vocês se machuquem com sua queda. Tomem cuidado crianças!
O
tempo passou e a vida voltou ao normal naquela casa. Aliás, apenas
no reino dos objetos houve espanto e anormalidade durante o tempo de
cura da Cadeira. Para os humanos a operação de descupinizar a
Cadeira de Balanço, era algo dentro da normalidade, não exigindo
maiores atenções, senão as habituais.
Durante
as crises por que passamos, muitos aprendem lições de vida e mudam,
enquanto que outros...
Assim
foi com a Cadeira de Balanço. Tão logo se viu livre dos cupins,
voltou a agir da mesma forma de antes: Ofendendo aos demais, gritando
com todos, esnobando os companheiros de cozinha e principalmente
desferindo seu ódio contra Dona Mesa. Talvez, sua principal mágoa
viesse do fato de que Dona Mesa sempre defendia a Família; talvez
fosse o fato de sempre ser utilizada para tantos serviços; talvez a
sabedoria com que conduzia todas as questões surgidas...quem sabe
oque se passava em seu interior? Desconfio que seu maior problema
fosse a inveja pela preferência que todos tinham, na casa, por Dona
Mesa.
A
cadeira de balanço estava decidida a sair daquela casa de um jeito
ou de outro e numa das poucas vezes em que se dirigiu a Dona Mesa sem
as agressões habituais disse:
- - Como você aguenta esta vida? Eu não suporto mais esta gente! Esta casa! Estes móveis! Não suporto mais nada! Nada! Nada! Chega! Já tenho até uma ideia para ir embora: Vou dar um tombo nesta mulher que toda vez senta em mim, com aquele pirralho chorão. O homem esta precisando de dinheiro, ouvi eles falarem outro dia. Depois de um bom tombo eles irão vender-me para qualquer um e eu saio de vez desta pocilga!
- - Não faça uma coisa destas Cadeira. -disse Dona Mesa. – O nosso Senhor é um homem bom e não vai vendê-la para ninguém. Ainda mais se houver a possibilidade de você estar ruim devido aos cupins que te infestaram. Ele vai te jogar fora ou queimá-la.
A
cadeira respondeu cheia de sí: -Engano seu minha “queridinha”. O
homem esta precisando de dinheiro e não vai desperdiçar a chance de
ganhar um bom dinheiro com minha venda. Eu valho muito. Além disso,
já ví ele negociando com os homens que vem aqui, comprar sua
produção.
- - Por isso mesmo sua tola! Não viu que ele não se deixa enganar, mas também não engana ninguém? - respondeu, aflita, Dona mesa.
- - Como você é ingênua minha “boa” Mesa – disse cinicamente a Cadeira – Ele é homem e os homens sempre se enganam. Não é possível que este tonto não tenha aprendido nada com seus semelhantes. Esta decidido: Eu provoco um tombo da Senhora ou num destes pequenos rebentos e o homem vai vender-me. Já sei, vou fazer melhor: Darei um tombo na Senhora quando ela estiver com este chorão mamando. Assim ele terá um bom motivo para chorar. - Um cínico riso, proveniente de um mau coração, foi notado por todos os Móveis e Objetos da cozinha.
Não
houve tempo para que Dona Mesa argumentasse com a Cadeira de Balanço,
quanto a loucura de seu plano. E se houvesse, certamente a Cadeira
não a ouviria; estava determinada!
Naquele
momento a Senhora dirigia-se para amamentar à criança; a Cadeira de
Balanço, unindo ação às suas recentes palavras derrubou ambos no
chão. O tombo foi tão forte que todos acharam que a Senhora
houvesse quebrado seus ossos. Ela levantou-se com dores.
Imediatamente voltou-se para o Bebê, que chorava muito. Felizmente
só estava assustado. Não tinha se machucado. Quanto a senhora,
sofreu apenas alguns hematomas. Nada grave.
A
cadeira sorria: - Consegui, consegui! Dei o tombo na Senhora. Agora
esta gente me vende, você vai ver.
Não
tardou e o Pai da Família chegou:
- - Pai: A mãe levou um tombão na cadeira de balanço, quando estava dando leite para o nenê! - disse um dos filhos.
- - Não acredito! Quantas vezes eu já falei para vocês tomarem cuidado com esta cadeira!? Ela deve estar podre por causa dos cupins. Machucou alguém? - perguntou o Pai.
- - Não, ninguém se machucou. Eu só fiquei com algumas marcas doloridas no corpo, causadas pelo tombo. Mas não foi nada grave. - respondeu a mãe.
O
Pai olha para a Cadeira de Balanço e diz: - Não tem jeito não.
Esta cadeira esta podre. Vejam como um dos “pés” dela quebrou,
quando caiu. Deve estar toda cheia de cupins. Aquele serviço que eu
fiz não surtiu efeito. Acho que só tem um jeito: Vou acabar de
quebrá-la e usar a madeira como lenha para o fogão.
Ao
ouvir isto a Cadeira de Balanço agitou-se inteira em seu interior e
Dona Mesa disse: - Minha filha, mas oque foi que você fez? Assinou
sua sentença.
-
Eu não quero ser quebrada e queimada! Eu não quero ser quebrada e
queimada. Me ajudem! Alguém me ajude, por favor. Não quero! Não
quero!
Os
demais móveis e objetos da cozinha nada poderiam fazer, apenas
contemplar a triste “sorte”, procurada pela Cadeira de Balanço.
Naquela
noite, muito fria, houve mais lenha para aquecer a todos naquela
casa.
Fim
As
referências encontram-se em textos da Bíblia: Nova Versão
Internacional (NVI)
¹-
“Sejam
sóbrios e vigiem. O diabo, o inimigo de vocês, anda ao redor como
leão, rugindo e procurando a quem possa devorar.” 1
Pedro 5:8
²
–
“Da
multidão dos que creram, uma era a mente e um o coração. Ninguém
considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas
compartilhavam tudo o que tinham.” Atos
4:32
³
- “Visto
que continuavam a interrogá-lo, ele se levantou e lhes disse: "Se
algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra
nela".
João
8:7
4
- “Portanto,
não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã se preocupará
consigo mesmo. Basta a cada dia o seu próprio mal.”
Mateus
6:34